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domingo, 17 de maio de 2009

A Graça do Ordinário


Embora o texto abaixo tenha pouco mais de 10 anos, é de uma atualidade incrível. Ele nos relembra que o Reino de Deus não é um programa de auditório nas tardes de domingo, com celebridades convidadas, quadros mirabolantes e histórias sensacionais.

Muitos congregações, músicas, pregações e livros hoje se esqueceram disso e estão contaminados pela teologia da prosperidade, pela confissão positiva e pelas técnicas de crescimento de igrejas. Os mantras da religião "evangel-wicca" (isto é, magia evangélica ou bruxaria crente)são repetidos à exaustão: proclama-se a vitória, profetiza-se a libertação, exige-se a restituição, libera-se a unção ou anuncia-se o milagre.

Creio num Deus vivo que é capaz de realizar quaisquer milagres, num Salvador vitorioso sobre as forças do mal, num evangelho que tem poder para transformar qualquer pessoa e numa igreja que congrega pessoas renascidas e santificadas. Mas creio também no que todos sabem (ou deveriam saber) por experiência pessoal: o reino de Deus não é semelhante a uma máquina de capuccino — milagres, por definição, são extraordinários e raros, as forças do mal ainda estão operando em nosso mundo, a transformação da vida não é generalizada nem instantânea, nem todos os assim chamados cristãos nasceram de novo e a igreja neste mundo não experimentará a perfeição antes do Advento.

O evangelho é extremamente simples, mas ao mesmo tempo profundo: Deus está restaurando um grupo à imagem do Criador, preparando este povo para o Segundo Advento de Cristo, manifestando neles o Seu poder de salvar e reservando para eles um lar na Nova Terra. Nosso lar, onde se realizarão os melhores e maiores sonhos — nossos e os de Deus — não é aqui. Se nossas expectativas forem direcionadas apenas para esta vida, parafraseando Paulo e Jesus, somos os mais infelizes de todos os homens e receberemos toda a nossa recompensa neste mundo. — Walter Dos Santos


por Ricardo Barbosa de Souza*

Em algumas das minhas viagens, é comum ouvir pessoas me perguntarem: “Como é sua igreja?” A expectativa delas é ouvir relatos de fórmulas infalíveis de sucesso, mecanismos de crescimento, estrutura de gerenciamento, funcionalidade etc. Minha resposta tem sido: “Minha igreja é uma igreja bíblica, como a maioria das igrejas que conheço: há nela maledicência, intrigas, gente que adultera e muitos que insistem em não obedecer Deus e Sua Palavra, como há aqueles que oram, buscam uma vida de obediência e serviço, se arrependem, confessam, tornam-se ministros de reconciliação. É tão bíblica como era a de Corinto ou de Éfeso. Ela não é diferente. As pessoas que ali se congregam, seus líderes e pregadores, todos vivem a mesma vida comum, com seus conflitos conjugais, crises pessoais, indefinições profissionais e dilemas espirituais.”

Certamente, temos na igreja e na vida dos seus membros histórias, fatos e experiências que chamariam a atenção por sua grandeza e beleza. Mas são situações extraordinárias. Elas não compõem o universo comum e ordinário da vida. Temos que aprender a olhar e reconhecer aquilo que Deus está fazendo na vida comum das pessoas. A graça do ordinário.

Igreja infantil, que precisa do entretenimento religioso para fugir da realidade da vida

O problema que muitos cristãos enfrentam hoje é que estamos mais interessados em conhecer a vida das pessoas através das biografias narradas na revista “Caras” do que nas biografias narradas na Bíblia. A citada revista e muitos livros e periódicos evangélicos se ocupam com o que é clamoroso, extraordinário, fantástico. Mostram uma parte da realidade, certamente uma parte insignificante. São biografias de casamentos perfeitos, paixões intermináveis, sorrisos que atestam uma felicidade invejável, igrejas bem-sucedidas, ministérios glamurosos, estratégias de crescimento dignas de exportação, cultos arrebatadores, igrejas maravilhosas.

Essas mesmas pessoas que lêem este tipo de biografia não conseguem, quando entram na igreja ou lêem a Bíblia, ver além do glamuroso, do extraordinário e do fantástico. São “jornalistas espirituais”. Admiram a fé de Abraão, mas ignoram sua covardia; pregam sobre a determinação de Jacó no vale de Jaboque em ser abençoado por Deus, mas negam seu espírito manipulador e enganoso; lembram sempre de Davi, o homem segundo o coração de Deus, mas não se importam com o adúltero, mentiroso e assassino. Se olharmos para a genealogia de Jesus, veremos nela muitos cuja vida não seria digna de aparecer em nossos livros e revistas que narram as biografias glamurizadas e testemunhos poderosos de sucesso.

Esta fascinação pelo extraordinário nos leva a criar os heróis, a exaltar o forte, a glorificar o vencedor. Os vemos sempre de longe, nos palcos e púlpitos, os aplaudimos, admiramos. Não fazem parte do nosso mundo simples, comum e ordinário. Não admitimos seus erros e pecados e eles, por sua vez, passam a ocultá-los, ou pior, negá-los. São sujeitos e vítimas do mundo fantasioso que criamos, precisam cultivar a ilusão para preservar o ídolo. Ao não admitir sua humanidade comum e ordinária, experimentamos uma espiritualidade infantil e imatura, dependente do sucesso deles, da ilusão de uma vida irreal. Tomamo-nos imaturos em relação aos nossos problemas e imaturos em relação aos problemas dos nossos irmãos. Igreja infantil, que precisa do entretenimento religioso para fugir da realidade da vida.

A Bíblia, ao contrário, nunca negou a realidade. Mesmo que não queiramos enxergá-la, ela está lá, rica em detalhes, para ninguém duvidar. Isto porque a vida cristã não consiste em negar a realidade, mas em trazer para dentro do comum e ordinário dos homens a presença salvadora de Jesus Cristo. Foi isto que aconteceu com Jacó, Davi, Jó e Daniel. Em meio aos conflitos próprios do seu tempo e cultura, das lutas e tensões diárias que experimentavam, provaram a salvação; não negaram seus pecados e dilemas - ao contrário, enfrentaram com honestidade e humildade sua natureza caída e provaram o poder da reconciliação.

Davi, Abraão, Jacó, lsaque e muitos outros tiveram problemas, como todos temos, em seus casamentos, na criação de seus filhos, na vida profissional e na sua relação com Deus. Se olharmos para a igreja primitiva, tão idealizada por muitos em suas pregações, encontraremos o mesmo cenário: adultério, mentiras, heresias, injustiças, brigas eclesiásticas, conflitos conjugais e pais lutando para compreender, amar e educar seus filhos.


A fé não é, necessariamente, um atestado de competência


Às vezes me pergunto: que diferença havia, ou há, entre aqueles que professam sua fé em Cristo e os que a negam? A diferença é que os primeiros trouxeram para dentro de suas vidas comuns e ordinárias a presença de Cristo, buscaram experimentar a conversão de caminhos maus e encontraram o lugar da oração e comunhão. Nem sempre a diferença está no comportamento visível. Conheço muitas famílias e profissionais que, embora não professem a fé em Cristo, demonstram uma compreensão relacional e um desempenho profissional muito melhor do que muitos cristãos. A fé não é, necessariamente, um atestado de competência. É o caminho a Cristo e à comunhão com Ele. A Igreja sempre foi, e continua sendo, uma comunidade de pecadores buscando reconciliação e paz com Deus.


Não se deixe seduzir por aqueles que prometem uma igreja melhor


A Igreja faz parte do que há de mais ordinário, mais comum e rotineiro na vida dos homens. Quando lemos a Bíblia, encontrarmos Deus agindo e transformando o homem dentro desta realidade comum e ordinária. São histórias de festas, pescarias, conversas e encontros que faziam parte da rotina das pessoas. Certamente havia lugar para o extraordinário, o incomum. Há milagres, muitos deles na caminhada da fé, mas a maioria dos milagres na vida cristã não tem a forma das grandes intervenções divinas. Estão escondidos nos episódios comuns, nas situações onde experimentamos o medo, a rejeição, o abandono e a traição; nos amigos que nos desapontam; no filho adolescente que desafia e protesta; no casal antigo de longos anos que enfrenta a amargura do divórcio.

Encontrar a vida em Cristo nestes lugares e cenas comuns e ser transformado por Ele é provar o milagre de ser reconciliado à sua imagem e semelhança. Quando aprendermos a aceitar o comum, a viver a realidade de quem somos e do que Deus fez e está fazendo em nós por meio do seu Filho Jesus Cristo; quando deixarmos de valorizar o extraordinário e cultuar nossas celebridades para reconhecer que, diante de Deus, somos todos pecadores que carecem da graça; quando olharmos mais para a Bíblia e suas histórias e menos para “Caras” e congêneres evangélicos — então começaremos a dar os primeiros passos em direção a um crescimento espiritual e pessoal que fará de nós cristãos com uma humanidade mais robusta e verdadeira.

Para que isto aconteça, mantenha seus olhos voltados para Cristo. Não se deixe seduzir por aqueles que prometem uma igreja melhor, um ministério mais poderoso, um lugar onde todos os seus problemas serão solucionados. Não acredite neles, são mentirosos. Para crescer na fé não precisamos de shows, nem de igrejas espetaculares, muito menos de líderes e pastores que não compartilham de nossa vida comum. Precisamos aprender a orar, ouvir e obedecer Deus e Sua Palavra, participar juntos da ceia do Senhor e servir nossos irmãos e irmãs no amor de Cristo. Essas coisas só acontecem dentro da rotina ordinária da vida.

*Ricardo Barbosa de Souza é pastor da Igreja Presbiteriana do Planalto, em Brasília/DF. Este texto foi publicado originalmente na revista Vinde, de março de 1999.
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